Cientificismo

Este texto foi utilizado no concurso para advogado da Câmara Municipal de São josé dos Pinhais e eu achei muito interessante, por isso, resolvi postá-lo:
 
Os dogmas do cienticismo talvez representem a herança mais onerosa da modernidade. Mais invasivos que os dogmas religiosos, com frequência alimentaram um racionalismo prepotente e desmedido (uma hybris da razão) que pretendeu explicar tudo, impelindo à margem os inúmeros aspectos não racionalizáveis da vida humana: instintos, pulsões, angústias, sentimentos, paixões.
Na tentativa de plasmar, conformar e tornar a projetar a realidade mediante estratégias de engenharia social, o racional-construtivismo, no entanto, não raro se transformou numa heterogênese das finalidades: ou seja, em fracasso, destrutividade, opressão. No século 20, muitos progressos científicos e técnicos conflitaram e falsificaram as pretensões e os abusos do cienticismo mediante a descoberta de fenômenos complexos e a reelaboração de teorias. Frequentemente, aliás, as metodologias científicas mais criativas e flexíveis forneceram exemplos de moralidade científica, de prontidão à mudança, de busca da verdade como fim e não como meio.
O homem não é, nem nunca será, o deus diante de quem outro homem deve ajoelhar-se. Nenhum homem, portanto, jamais será onisciente. Isso vale, antes de mais nada, para os cientistas. Talvez seja essa a lição mais importante que decorre das descobertas e das controvérsias da epistemologia contemporânea. Basta pensar no falibilismo e racionalismo de Karl Popper, na virada epistemológica pós-positivista de Thomas Kuhn (a estrutura da revolução científica), de Imre Lakatos (a metodologia dos programas de pesquisa), de Paul Feyerabend (o anarquismo metodológico), de Edgar Morin (a complexidade): teorias divergentes em linhas de pesquisa, mas convergentes ao criarem um pluralismo teórico oposto a todo monismo. Cada uma dessas teorias mostrou, com diferentes ênfases, que a descoberta científica baseia-se numa ignorância consciente, no controle dos limites da razão.
Nessa consciência, nesse saber que não sabemos nada de absolutamente certo, é que consiste a sabedoria da tradição que vai de Sócrates a Popper. Se o sábio de Platão é aquele que sabe distinguir entre o bem e o mal, o sábio de Sócrates é aquele que sabe que não sabe, que conhece os limites e os erros gerados pelo conhecimento, quando solicitamos seus mecanismos internos.
O problema da ignorância não é, em âmbito científico, menos importante,  fascinante e problemático que em âmbito  filosófico. O cientista Heinz von Foerster enfrenta-o de forma original: “O que distingue um cientista de um não-cientista é o fato de que o primeiro confessa imediatamente a própria ignorância. De fato, só à base dela é que surge seu desejo de conhecer. Se soubesse tudo não se colocaria nenhuma pergunta, não daria início a pesquisa nenhuma”. A clássica afirmação socrática “Sei que não sei” parece-lhe insuficiente, porque seu campo de forças ainda é o conhecimento.
(Trecho extraído do texto “Não sabemos que não sabemos”, de Mauro Maldonato, publicado na Revista Scientific American Brasil, ano 2, n. 21, de fevereiro de 2004, p. 33–37.)